Em 2016 o Núcleo fez sua primeira doação, o “Caderno de Viagem” segue para a reserva técnica da Biblioteca Mário de Andrade junto com os “Álbuns de Xilogravura de Sorocaba” de 1949 e o de “Roma” comprados por Sergio Milliet quando diretor da BMA. Já no acervo do Núcleo encontra-se um conjunto de monotipias de 1949, com as mesmas imagens dos “Álbuns de Xilogravura de Sorocaba”, onde o Núcleo conclui ser um dos únicos estudos de Marcello, já que para o artista tudo era trabalho, o que não gostava, queimava. Esse conjunto peculiar traz a esta exposição uma característica própria, formando um recorte para o diálogo entre os dois acervos, Núcleo e Biblioteca. Somando a estas obras, serão mostrados livros raros que foram referências e importantes para a formação do artista, resultando assim, uma bela mostra de afetos.
Nina Kreis, responsável pelo acervo do Núcleo e da catalogação das obras do livro, assume a curadoria ao lado de Joana Moreno de Andrade do setor de obras raras da Biblioteca Mário de Andrade. Na intenção de fazer a interface dessa curadoria entre as instituições, o Núcleo convidou o curador, Fabrício Reiner, compondo assim, uma equipe de curadores para construir e pensar no diálogo entre os dois acervos.
A IMPORTÂNCIA DA BIBLIOTECA MÁRIO DE ANDRADE PARA A FORMAÇÃO DO ARTISTA
“No começo de nossa frequentação na Biblioteca, na Discoteca e no Café éramos três: você (Otávio Araújo), Sacilotto e eu, em seguida vieram Luís Andreatini, com as seções de desenho acompanhadas de música de jazz, ou “eruditas”, em sua casa da rua Capote Valente, Carlos Prósperi (Aldemir Martins chegaria em 1946), e alguns outros para aumentar a pequena “confraria” de jovens aspirantes a artista.”- Octávio Ferreira Araújo, 1995.
Neste trecho de um texto retirado do livro “O mundo mágico de Marcelo Grassmann”, o amigo e artista Octávio Araújo descreve bem a geração de artistas e as itinerâncias pela cidade de São Paulo, incluindo longas paradas na Biblioteca, principalmente na seção de obras raras, onde tinham até “passe livre”.
MARCELLO E A BIBLIOTECA
a formação de um jovem artista
Jovem e inquieto, ex-aluno de modelagem da escola profissional do Brás, Marcello Grassmann fez da Biblioteca Mário de Andrade, em princípios do decênio de 1940, um dos seus locais favoritos na cidade. Muito antes de MAM, Masp ou Bienal, a então Biblioteca Municipal era o principal repositório do acervo artístico e literário da cidade; por engenho de Sérgio Milliet e Maria Eugênia Franco, responsáveis não só pela criação da Seção de Artes da Biblioteca, em 1945, mas pela contribuição de suas ações na formação de diversos artistas do período. Como nos lembrava o gravador, o acesso às preciosidades de edições “raras e caras” só eram possíveis pela relação que ele mantinha com os dois.
Explicitar parte da relação que Grassmann mantinha com a Biblioteca, consequentemente com a cultura literária, é um dos propósitos dessa mostra. Parte do acervo que aqui se dispõe não só evidencia o convívio do artista com os autores e, nesse sentido, a substância de sua arte, como demonstra a importância do acervo da Biblioteca na construção de um cenário artístico, moderno, em São Paulo.
Kubin, Bosch, Munch, Kafka são alguns dos nomes por onde os olhos atentos e ávidos de Marcello percorreram, mas também Da Vinci, Michelangelo e Dante. Autores e artistas que, gravados na memória, compuseram, emaranhados, seu universo.
Em ano marcado por comemorações e decisões proeminentes para a história do Brasil, sejam elas artísticas ou políticas, apresentar nos salões da BMA obras de Marcello Grassmann pode parecer, em primeiro momento, insólito, uma vez que suas imagens podem não abordar diretamente temas sociais ou políticos, tampouco se inscreverem na tradição modernista mais aparente. É importante lembrar, entretanto, que a história oficial se apropriou do modernismo como busca pela renovação artística, estagnada pelo academicismo do século XIX. Certa feita escreveu Ferreira Gullar que a arte de Grassmann tratava-se de “uma invenção moderna do desenho”, talvez no intuito de inseri-lo justamente nessa tradição antiacadêmica, portanto modernista, que, por mais improvável que seja, ensejaria sua filiação artística.
O que essas imagens aqui expostas nos mostram, todavia, é que essa “modernidade” de Marcello Grassmann reside na história que o artista travou com a Biblioteca e com seus agentes, história essa que também se confunde com a história das artes brasileiras. Afinal, é em grande parte através do acervo aqui disponível que Grassmann conviveu não só com as vanguardas do início do século XX, como também com os assim chamados “clássicos”, matéria fundamental para a arte moderna do pós-primeira guerra e direção privilegiada dos artistas modernistas da segunda geração. Pode-se dizer, nesse sentido, que a arte de Marcello Grassmann se forma do encadeamento das muitas referências que ele frequenta nesse período efervescente e que, como poucos, soube se apropriar, com inteligência e ironia. Se por um lado ele se mantém consistente no desenho como direção para a sua figuração, disforme ou não, por outro, cria narrativas que nunca se completam, amplificando a sensação de estranhamento diante desses seres improváveis ou fantásticos.
Lívio Abramo e Goeldi, mas também Rubens Borba de Moraes, Oneyda Alvarenga, Mário de Andrade e até mesmo Monteiro Lobato foram algumas das pessoas que compuseram esse seu universo cultural, direta ou indiretamente, como ele mesmo explicitou em depoimentos diversos. Conjunto que podia se iniciar nas páginas de quadrinhos do Príncipe Valente e terminar na divina comédia de Gustave Doré.
Fabrício Reiner
Nina Kreis é gravadora, impressora e diretora do Núcleo, responsável pela catalogação e manutenção do acervo. Foi assistente e amiga de Marcello num convívio de dez anos.
Joana Moreno de Andrade é bibliotecária, coordenadora da seção de obras raras e especiais da Biblioteca Mário de Andrade por 16 anos.
Fabrício Reiner, é mestre em filosofia em Cultura e Identidades Brasileiras pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, participou de diversas pesquisas acadêmicas no âmbito da história da arte. Desenvolveu também projetos técnicos e curatoriais em entidades como a Biblioteca Mário de Andrade e a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Atua como curador independente.